As pessoas que têm amigos na margem sul têm todas um aperto de mão secreto. É uma espécie - pronto - de património cultural colectivo.
«Olá»? «Bom dia»? Isso é noutros sítios. Eu, por exemplo, quando saio à rua e vejo um amigo neste belo gheto com duas pontes, nunca lhes digo essas coisas lá do «então-estás-bom?», nem lhes dou um passou-bem ou dois beijinhos.
Cá disso.
Cumprimentar alguém envolve conhecimentos, enfim, toda uma componente técnica. Ainda há bocado - há uma bequinha - precisei de ir à Caixa - são vidas... - e vi um amigo e - é verdade - comprimentei-o.
Mas aí indagam vocês «Mas como foi isso possível sem se ter usado essas coisas lá do «então-estás-bom?, dos passou-bens ou dos dois beijinhos?»
Fizemos assim: as palmas das nossas mãos chocaram - tlhek - e rodámos sobre nós e a meio tocámos com os cotovelos e rodámos ao contrário e as palmas das mãos chocaram - tlhek - e agarraram-se pelos pulsos e flectiram-se sete vezes e largámo-nos imediatamente delas para as puxarmos para nós e estalar três vezes os dedos e as costas das nossas mãos tocaram-se - tlhek - e os punhos fecharam-se e chocaram e no fim parámos ao mesmo tempo e gritámos ...«Óyé».
Bom, lá tratei das vidas que tinha a tratar e saí da Caixa, ao que fui assolado por um pensamento perturbador: «Bolas, lá em casa só tenho peixe e não o pus a descongelar para o almoço», de maneiras que decidi ir ao Pingo Doce. Então - oh, quanta surpresa - e não é que encontrei outro amigo - o Décio - lá à porta, mais a avó?
Como eu sou uma pessoa educada - é um coisa que já vem desde a infância -, as palmas das minhas mãos lá chocaram nas do Décio - tlhek - e rodámos sobre nós e a meio tocámos com os cotovelos e rodámos ao contrário e as palmas das mãos chocaram - tlhek - e agarraram-se pelos pulsos e flectiram-se sete vezes e largámo-nos imediatamente delas para as puxarmos para nós e estalar três vezes os dedos e as costas das nossas mãos tocaram-se - tlhek - e os punhos fecharam-se e chocaram e no fim parámos e gritámos «Sbeeeem».
Óbvio. Também não faltei ao respeito à avó do Décio. Só que no fim de a comprimentar, gritámos «Manuel Luís Goucha».
E lá me dirigi à Charcutaria. Tirei a senha para o frango e esperei pela minha vez. Nisto, «teeeeeeeeeeeun, 34», e a senhora diz-me «Bom dia, diga fáxavore...»
Pára tudo.
Então, quer dizer?, uma pessoa vai ao frango, hã, e está ali para gastar o seu dinheiro e ser bem atendida, em conformidade com os padrões sociais vigentes na Margem Sul, e do nada ouve «Bom dia»? As pessoas que estavam comigo na fila começaram logo assim a modos que - tsc, tsc - a olhá-la de lado e a sussurrar indignadas com aquele mau comportamento..
Como sou do gheto - já desde pequenino -, arrespondi-le imediatamente - que eu sou uma pessoa que é de arresponder log'assim de repente quando le começam a entrar na malcriadagem:
«"Bom dia" é lá na sua terra, ó desinducada. Aqui, faz-se assim, ó...».
E virei-me para o senhor que, perfeitamente ao acaso, estava ali atrás de mim.
As palmas das nossas mãos chocaram - tlhek, com atitudh - e rodámos sobre nós e a meio tocámos com os cotovelos e rodámos ao contrário e as palmas das mãos chocaram - tlhek, com atitudh - e agarraram-se pelos pulsos e flectiram-se sete vezes e largámo-nos imediatamente delas para as puxarmos para nós e estalar três vezes os dedos e as costas das nossas mãos tocaram-se - tlhek, com atitudh - e os punhos fecharam-se e chocaram e no fim gritámos ...«Pausa-da-barra-do-cenário-do-bufo» muito depressa.
Portanto, vá, comportemo-nos como deve ser. Cá «bom dia».