Eu queria aquele cd. Eu desejava aquele cd. Eu – qual ressacado do haxe – precisava daquele cd.
Tudo começou no metro. Vi um cartaz, depois outro, e outro, e outro, e outro, e outro, que dizia – e outro - « Mandona – Confessions on a dancefloor – Irresistível novo álbum».
Irresistível, li. Irresistível. Aquilo gerou todo um efeito em mim, que me apanhou – não sei se conseguem ter noção - desde o tenencéfalo até ali àquela zona onde fica a medula oblonga.
Mal cheguei a casa, gritei como se não houvesse amanhã: «Ó mãe, ó mãe, compra-me o irresistível novo cd da Mandona»
Ela disse: «Não». E eu insisti: «Vá lá». E ela: «Não». E eu: «Bolas, mãe». E ela: «Mau». E eu: «Mas porquê». E ela: «Levas com o chinelo. Aníbal António.» E eu calei-me.
Depois de uma pausa, disse-me: «Olha, só por causa disso, vais já para o quarto reflectir sobre o teu comportamento desagradável, hmmm?».
Não sei porquê aquilo de ficar fechado no quarto não me pareceu lá muito boa ideia e foi coisa para inclusivamente me causar algum apoquentamento.
«E agora o que é que eu vou fazer?» Habitava em mim todo um conflito interior. Por um lado, a minha mãe. Se me apanhasse a fugir, levava com o chinelo. Por outro, o cd era irresistível.
Ia ficar ali fechado no quarto? E eu disse cá para comigo: «Não». Tirei do armário o porco de loiça, joguei a mão à maçaneta e. Bolas. A minha mãe.
Com as moedas de dois cêntimos a chocalhar, desatei a correr, a correr, a correr, a correr, a correr em direcção à loja e – ó indizível alegria – não é que tinha conseguido adquirir a minha cópia original do novo álbum da Mandona?
Já a espumar de ansiedade, regressei a casa possesso por ouvir o cd que levava escondido no casaco.
Ia eu pôr o cd no leitor quando a minha mãe me diz: «Olha lá, isso que aí pões não ocorre tratar-se do novo álbum da Mandona, pois não?». Respondi: «Não. Já aprendi a lição com aquele castigo de ficar fechado no quarto a reflectir; e olha que me tornei num homem novo».
Mal virou costas, dei play. Aaaah. Tal era o bom do novo cd da Mandona: abri a boca, salivei e revirei os olhos. À falta de limão - é -, não pude evitar um espasmo grave e prolongado.
Nisto, quem entra? A minha mãe. Disse-me:
«Ahaaa. Com que então a ouvir a Mandona, hein? Seu malvado.»
Foi um raspanete e tanto. Que não tinha jeito nenhum a casa parecer uma estação de metro, que não tarda chamava mais alguém da família para gritar "Marquês de Pombal; há correspondência com a linha azul" ou então para fazer o pIII-pIII-pIII-pIII-pIII-CLAaaNnG das portas a fecharem.
«E eu pergunto. Achas isso bem? Hmm? Seu malvado.» - perguntou ela com uma mão na anca e outra a segurar num rolo da massa de alumínio. Anibal António, dá cá isso imediatamente que agora temos que ir jantar». Eu disse: «Não». E ela insistiu: «Maaau». E eu: «Não». E ela: «Olha que eu tenho aqui uma corda». E eu: «Não mandas em mim». E ela: «Ai é?». E amarrou-me a uma cadeira. «Tommmaaaa!», disse antes de trancar a porta à chave.
Sozinho e em silêncio - enfim, qual homem na sua solidão primordial, dominando o horizonte com o olhar enquanto o cabelo esvoaça ao sabor da nortada numa praia de Peniche - ali com o cd pousado à frente, continuei a espumar da boca com alguma intensidade. « Mandona – Confessions on a dancefloor – Irresistível novo álbum».. Irresistível. Irresistível. Irresistível.
O cheiro a batatas a murro no forno, depois de um intenso dia de labuta, de terem passado 14 horas sobre a minha anterior refeição, cerca de meia maçã, e para mais ter que ficar sem jantar, vá, era como o outro. Agora, sem a Mandona é que não.
Quinze dias depois, quando a minha mãe me veio desamarrar, tudo estava ultrapassado. Chiça, lá tinha conseguido vencer a irrestibilidade do cd, hein?, - pá aquela pulsão ênterior, aquele desejo freudiano, como dizer?, aquele leão q'há em nós. Que difícil que tinha sido libertar-me da Mandona. Ufa, aquilo é que foi, hein?
Aqueles quinze dias a pensar na vida amarrado numa cadeira deixaram-me com um ratito no estômago. Quando me dirigi à cozinha, lá estava o rádio ligado e a minha irmã a cantarolar a Rita Guerra, de olhos fechados e de braços ondulantes no ar «Á espera de luuuz, à espera do maaar, à espera do soool...»
Pedi-lhe: «Arranjas-me o mp3?» Ela disse: «Não». E eu insisti: «Vá lá». E ela: «Não». E eu: «Bolas, Jéssica Joana». E ela: «Mau». E eu: «Mas porquê?». E ela: «Olha q'eu tenho aqui um berbequim - e olha que este é daqueles que aleija». E eu calei-me.
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